terça-feira, 24 de maio de 2011

Da gaveta... (postado sem revisão!)

OS CÃES DE MEU TIO

À semelhança da obra de Chaplin, não sei se é próprio qualificar de comédia o estilo de Jacques Tati. Essa minha 'desconfiança' reside na pergunta: seriam de fato engraçados os pequenos descompassos do nosso cotidiano? No entanto, vemos seus filmes e rimos ou, ao menos, sorrimos. E não por acaso. Afinal, estamos ali de alguma forma retratados, nas malhas do óbvio, que este cineasta tão sensivelmente verte em inédito. Sua lente apreende os detalhes mais descabidos e faz com eles uma outra história, a par da que se toma como a principal. Mas essa outra história é de longe a mais verdadeira, pois é ela que peculiarmente nos traduz, o que somos, como teria dito Freud, um chiste! Daí o riso, incontrolável mas neste caso imensamente salubre, pois trata-se de uma forma indolor de nos olharmos no espelho, um entretenimento em primeiro lugar.
Em Meu Tio não falta nada, não sobra nada. É didático, fácil de acompanhar, à diferença de As Férias de Monsieur Hullot, em que o enredo fica um tanto diluído nos jogos. Meu Tio é sem dúvida mais filme. Contém todos os elementos essenciais a um longa-metragem, cumpre todas as exigências e vai além, sendo anárquico, corajoso e solitário em sua ousadia; poucos filmes alcançam tal singularidade.
Um desses elementos tão bem colocados é a trilha sonora, demarcando a distinção entre dois universos: o vilarejo, colorido, alegre e com forte apelo humanista; e a cidade moderna, simétrica, racional, mas nem por isso menos graciosa, sendo sua música uma composição de ruídos de portas magnéticas, aparelhos domésticos e outras geringonças da era da eletrônica. A despeito de seu caráter esterilizado, descartável e pretensamente apático, revelando um homem mimetizado na fauna das máquinas, esta cidade do futuro nos presenteia com cenas inacreditáveis: no meio da noite, em duas pequenas janelas redondas e iluminadas de uma casa, assomam duas cabeças humanas, que se movem em semicírculo, sincronizadamente, dando-nos a ilusão de estar vendo um par de olhos curiosos, espiando o que ocorre do lado de fora. É puro desenho animado!
Efeitos como esse são arquitetados por um Tati de veia eminentemente teatral, que não deixa, no entanto, de usar-se fartamente dos recursos que o cinema lhe oferece como para carregar o espectador para baixo de uma mesa de feira, onde um pequeno vira-lata sente-se provocado e rosna, mostrando os dentes, à pobre carranca de um peixe, deixada à mostra na sacola que M. Hullot balança de um lado para outro, enquanto conversa desavisadamente com o feirante.
Aliás, os cães em Meu Tio são ponto de partida e chegada. Não são poucas as situações em que são eles os protagonistas. O cachorro 'rico', vestido com o mesmo xadrez preto e vermelho que ostenta seu dono – o bem-adaptado cônjuge da irmã de M. Hullot – nas mangas e gola do robe, é um bom exemplo: não há melhor ironia que a cena deste robusto casal preso na garagem da casa, reivindicando em tom infantil que ele passe pelo sensor fixado na calçada para que a porta abra (detalhe, com o rabo levantado para alcançar o campo magnético). Eu, particularmente, me delicio com o momento em que os cães 'pobres', depois de entrar atrás de M. Hullot na futurística fábrica de plásticos, vão saindo enxotados por um funcionário mal humorado – quando a gente pensa que saíram todos, o dito serviçal abre novamente a porta e expulsa mais um.
Pra terminar, os mesmos cães que no início buscavam comida nos latões de lixo povoam serelepes o cenário da praça, urinando aqui, farejando ali, detrás de uma singela cortina de voile que encerra ternamente essa obra-prima. Dizer que esse final é poético seria quase piegas. Pra mim, é simplesmente perfeito!